O fantástico mundo de Jéssica
- jessica rocha
- 1 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Eu inventava vidas futuras. Era isso que eu fazia. Eu passava horas do dia na vida totalmente inventada por mim, a vida em que eu dirigia tudo que me aconteceria. Eu não sabia como poderia chegar a realmente viver aquelas vidas, mas eu as imaginava mesmo assim… eram futuros brilhantes.
Teve uma vida que eu vivi por meses… Enquanto descia caminhando de casa ao trabalho, uma caminhada de 20 a 30 minutos a passos de quem passeia, me imaginava no futuro quando não precisava mais caminhar pra trabalhar, eu não percorreria aquele caminho nem mesmo de carro pois nada na minha outra vida existia em comum com vida que eu levava, tudo era diferente, outra casa, outro emprego, outra realidade.
Exceto por uma amiga que eu tinha levado comigo pro meu futuro imaginário. Nele, nós morávamos juntas, numa casa que eu idealizava mas que com certeza ela aceitaria, tínhamos nobres profissões igualmente escolhidas por mim. Éramos tão bem sucedidas mas ainda assim fazia sentido que morássemos juntas, porque aquilo nos faria feliz. Era assim que conseguíamos nos ver sempre, mesmo com os compromissos dos nossos dias muito atarefados de coisas futuras muito importantes.
A noite conversaríamos sobre tudo que se passou durante o dia e encontraríamos conforto uma na outra. Que linda realidade eu criei todinha pra nós. Nessa vida eu era promotora de justiça e ela era juíza, eu criei nossos figurinos, cada terninho que eu usaria, editei matérias nos jornais futuros com nossas imagens. Coloquei compromissos calculados em nossos dias pra que a vida não ficasse corrida demais. Nos finais das nossas tardes sempre bebíamos bebidas caras em taças bonitas e sorrimos felizes por ter exatamente a vida que queríamos.
Eu sabia que teria alguns problemas, como por exemplo convencer minha amiga de seguir a profissão que eu já havia previamente planejado, e que na real não tinha nada a ver com ela, que acredito que nunca deve ter sonhado em ser juíza.
Bem, entre a vida que eu levava e essa versão dela no futuro, sempre ficavam muitas pontas soltas e talvez por isso nunca tenha contado sobre elas pra ninguém, guardadas só pra mim eu poderia simplesmente ignorar o que não encaixava e viver feliz meu proprio conto de fadas moderno, uma vida pintada especialmente pra satisfazer cada desejo que eu queria naquele momento pro meu futuro.
Às vezes tinha um “Q” de série, devo dizer. Começava a história daquele dia assim que punha os pés pra fora de casa e a caminhada acabava antes da trama toda, então eu adiava, e assim que algum tempo me vagava eu voltava a criar o desfecho daquele episódio. Eu vivi dias inteiros nesse futuro imaginário. Ele era muito mais importante do que qualquer coisa que me acontecia na vida real, nada poderia me abalar, porque a minha vida de verdade estava me esperando, e eu já podia imaginar como ela seria, ninguém me tiraria dali.
Vez ou outra me perguntei sobre essas histórias que eu criava, mas até certa idade eu imaginava que tinha todo o tempo do mundo e todas as possibilidades, não importava se a vida que eu criava nas horas vagas era muito distante dessa que eu vivia, o futuro inteiro era tão incerto e eu não tinha noção nenhuma de como as coisas aconteciam, então a vida de verdade era muito mais incerta do que esta que eu inventava. Além do mais, que problema poderia ter em criar cenários futuros na sua cabeça pra me distrair?
Nem sempre eu brincava na mesma história, às vezes eu criava uma vida rapidão, só alí naquele dia, uma narrativa rápida sobre o dia que eu estaria no hospital internada, e veria as pessoas indo me visitar e falando coisas pra mim, coisas que eu gostaria muito de ouvir. Essa narrativa me apareceu muitas vezes, mas nunca me demorei nessas tramas, sentia alguma tristeza e simplesmente interrompia a história, como uma série que não passou do episódio piloto.
Lembro que já vinha a tempos vivendo meu futuro com a minha amiga juíza e me apaixonei, aqui, na vida real. Engraçado agora pensar no tanto de malabarismos que eu imaginei pra tentar encaixar mais uma pessoas naquela narrativa, não cabia um namorado naquela nossa vida tão feliz e já inteirinha planejada. Se eu namorasse agora, no futuro eu deveria estar casada, como eu ia morar com a minha amiga e ser casada? E se eu tivesse filhos? E nossas tardes com bebidas em taças chiques? Aquele boy estragou um futuro inteirinho, mas eu estava apaixonada, então algumas vezes eu fingia que ele não existiria no futuro, pra não estragar minha história, em outras vezes eu inventava uma segunda vida alternativa, onde eu pudesse encaixar um namorado, um marido, filhos e todo esse outro universo…e assim eu fui inventando muitas vidas pro meu futuro, e vivendo entusiasmadamente em cada um delas, cada enredo daqueles era uma possibilidade na minha vida.
conforme iam se trocando os meus afetos, eu ganhava um novo enredo pro meu futuro. Romanticamente eu fiz isso todas as vezes que me lembro (exceto em uma), uma pessoa entrava no meu radar e eu mais que depressa começava imaginar a vida que teríamos juntos no futuro, nossa casa, filhos, e como eu me moldaria da melhor maneira àquela nova realidade.
Um fato curioso é que assim que minhas histórias começaram basear-se nas minhas relações românticas, nenhuma história profissional brilhante foi imaginada, também não havia mais amiga. Mas não se engane, apesar da pontada que eu sentia sempre que criava essas vidas futuras, um incomodozinho que apontava pro fato de que eu não estaria plenamente realizada profissionalmente sempre que houvesse um casamento, ainda assim eu estava muito feliz no futuro, com a família que eu tinha construído, uma pra cada uma dessas relações voláteis que tive.
Pra mim era completamente normal e imaginável que ao construir uma família eu tivesse que abrir mão desses sonhos profissionais e estava tudo bem, pois eu seria muito feliz cuidando dos meus filhos, da casa e do meu marido. Quanta inocência minha.
É curioso notar esses padrões de comportamento que eu tinha antes, engraçado que tudo isso se passava na minha cabeça sem que eu sequer pensasse sobre isso. Quer dizer, eu ficava horas do meu dia inteiramente voltada pra dentro, pra alguma história entusiasmada que só existia na minha cabeça mas eu não notava isso. Como assim? Reparei que tenho poucas memórias dessas épocas. O que eu fazia?
Quando comecei escrever esse texto eu não sabia dizer em qual momento parei de produzir esses futuros. Mas agora a compreensão está muito clara pra mim: o futuro chegou!
Aquela imensidão de possibilidades foi escorrendo pelas minhas mãos à medida em que eu fazia escolhas e vivia minha vida. O caminho foi ficando delimitado, me enterrei na realidade como se ela fosse uma coisa pré determinada: um casamento, um filho, uma vida como a de todos e fim. Eu não gostava dessa história, mas também não conseguia criar outras, eu estava criativamente engessada.
Eu não percebi que parei de criar, eu estava atarefada demais pra perceber.
Sinto agora como se o peso de seguir aquele caminho que eu mesma tinha escolhido estivesse me soterrando num lugar onde eu não gostava de estar, eu mal podia respirar.
De lá pra cá eu fiz inúmeras revoluções internas, no começo eu mal sabia o que estava fazendo, e às vezes parece que ainda estou no começo, mas não estou, já percorri um longo caminho que me orgulha muito enquanto pessoa. O meu desejo agora é conseguir retomar minha habilidade de criar meus futuros, de forma mais consciente dessa vez, mas tão livre quanto antes. Quero de volta minha habilidade de sonhar, que nem tinha percebido, mas ficou enterrada em algum lugar no meio das minhas experiências até aqui.

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